
“Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem eu suponho que sou. Dizia-o imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo… E tenho saudades deles.”
in Carta a Adolfo Casais Monteiro sobre a génese dos heterónimos, de 13 de Janeiro de 1935
“Por qualquer motivo temperamental que me não proponho analisar, nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e ideias, os escreveria. Assim têm estes poemas de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que ser considerados.”
Alberto Caeiro
Alberto Caeiro apresenta-se como um simples "Guardador de rebanhos", que só se importa em ver de forma objectiva e natural a realidade com a qual contacta a todo o momento. Poeta do olhar, procura ver as coisas como elas são, sem lhes atribuir significados ou sentimentos humanos. Considera que "pensar é estar doente dos olhos", pois as coisas são como são. Ver é conhecer e compreender o mundo, por isso, "pensa vendo e ouvindo". Recusa o pensamento metafísico, afirmando que "pensar é não compreender". Caeiro constrói uma poesia das sensações, apreciando-as como boas por serem naturais. Para ele, o pensamento apenas falsifica o que os sentidos captam. É um sensacionista, que adere espontaneamente às coisas tal como são e procura gozá-las com despreocupada e alegre sensualidade. "Argonauta das sensações verdadeiras", o poeta ensina a simplicidade, o que é mais primitivo e natural. Daí que a poesia das sensações seja, também, uma poesia da Natureza. Caeiro afirma-se o poeta da Natureza que está de acordo com ela e a vê na sua constante renovação. Mestre de Pessoa e dos outros heterónimos, Caeiro dá especial importância ao acto de ver, mas é sobretudo inteligência que discorre sobre as sensações, num discurso em verso livre, em estilo coloquial e espontâneo. Passeando e observando o mundo, personifica o sonho da reconciliação com o universo, com a harmonia pagã e primitiva da Natureza. "Sou um guardador de rebanhos" é um dos poemas que, num tom de ritmo moderado, advogam uma síntese de calma e de movimento num presente que se actualiza e objectiva o desacordo entre o que se pensa e a vida que acontece. Poeta instintivo e raciocinador anti-metafísíco, o heterónimo pessoano Alberto Caeiro é o poeta da simplicidade completa e da clareza total, que representa a reconstrução integral do paganismo, descrevendo o mundo sem pensar nele. Alberto Caeiro propõe-se não passar do realismo sensorial, considerando que "a sensação é a única realidade para nós". Considera que é preciso aprender a não pensar, libertando-se de tudo o que possa perturbar a apreensão objectiva e limpa da realidade concreta, tendo de fazer, como diz, uma "aprendizagem de desaprender", O "puro sentir", nomeadamente através da visão, constitui a verdadeira vida para Alberto Caeiro, que saúda o breve e transitório, pois na Natureza tudo muda. Aprecia as coisas, tais como são, e procura a sua fruição despreocupada.
Ricardo Reis
Ricardo Reis é o poeta clássico, da serenidade epicurista, que aceita, com calma lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas. "Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio", "Prefiro rosas, meu amor à pátria" ou "Segue o teu destino" são poemas que nos mostram que este discípulo de Caeiro aceita a antiga crença nos deuses, enquanto disciplinadora das nossas emoções e sentimentos, mas defende, sobretudo, a busca de uma felicidade relativa alcançada pela indiferença à perturbação. A filosofia de vida de Ricardo Reis é a de um epicurismo triste, pois defende o prazer do momento, o carpe diem, como caminho da felicidade, mas sem ceder aos impulsos dos instintos. Apesar deste prazer que procura e da felicidade que deseja alcançar, considera que nunca se consegue a verdadeira calma e tranquilidade, ou seja, a ataraxia. Sente que tem de viver em conformidade com as leis do destino, indiferente à dor e ao desprazer, numa verdadeira ilusão da felicidade, conseguida pelo esforço estóico lúcido e disciplinado. A sua poesia intelectual faz a apologia da indiferença do homem diante do arbítrio e do poder dos deuses e faz renascer o objectivismo helénico reencarnando uma reexperimentaçâo de pensamento e de estética que se distancia de Pessoa, mas que o configura. Em Ricardo Reis há a apatia face ao mistério da vida mas também se encontra o mundo de angústias que afecta Pessoa. O heterónimo pessoano Ricardo Reis é um poeta contemplativo que procura a serenidade, livre de afectos e de tudo o que possa perturbar o seu espírito. É, também um estóico, apesar de, aparentemente, resignado. Há, no seu pensamento, uma tensão, uma atitude de luta contra tudo o que lhe tire o desassossego. É uma atitude vital na busca do entendimento da felicidade e da liberdade a que tende o homem, obrigado a viver num meio social adverso. A obra de Reis sugere-nos o saber contemplar, ou seja, ver intelectualmente a realidade: “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo”. Para Reis é necessário saber apreciar, muito consciente e tranquilamente, o prazer das coisas, sem qualquer esforço ou preocupação. É preciso viver a vida em conformidade com as leis do destino, indiferente à dor e ao desprazer: “Segue o teu destino, / Rega as tuas plantas, / Ama as tuas rosas. / O resto é a sombra / De árvores alheias”. Próximo de Caeiro, há na sua poesia a aurea mediocritas, o sossego do campo, o fascínio pela natureza onde busca a felicidade relativa.
Álvaro de Campos
Para Álvaro de Campos, a sensação é tudo. O Sensacionismo torna a sensação a realidade da vida e a base da arte. O "eu" do poeta tenta integrar e unificar tudo o que tem ou teve existência ou possibilidade de existir. Álvaro de Campos é quem melhor procura a totalização das sensações, mas sobretudo das percepções conforme as sente. O seu Sensacionismo distingue-se do de Alberto Caeiro na medida em que Caeiro, na sua simplicidade e serenidade, via tudo nítido e recusava o pensamento para fundamentar a sua felicidade por estar de acordo com a Natureza; Campos, sentindo a complexidade e a dinâmica da vida moderna, procura sentir a violência e a força de todas as sensações. Em Campos, há a vontade de ultrapassar os limites das próprias sensações, numa vertigem insaciável, que o leva a querer "ser toda a gente e toda a parte". Numa atitude unanimista, procura unir em si toda a complexidade das sensações. Mas, passada a fase eufórica, o desassossego de Campos leva-o a revelar uma face disfórica, a ponto de desejar a própria destruição. Há aí a abulia e a experiência do tédio, a decepção, o caminho do absurdo. Depois de exaltar a beleza da força e da máquina por oposição à beleza tradicionalmente concebida, a poesia de Campos revela um pessimismo agónico, a dissolução do "eu", a angústia existencial e uma nostalgia da infância irremediavelmente perdida. Dos três heterónimos é aquele que mais sensivelmente percorre uma curva evolutiva. A obra de Álvaro de Campos passa por três fases: a decadentista, que exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações. A segunda fase é a futurista e sensacionista, que se caracteriza pela exaltação da energia, de "todas as dinâmicas" e da velocidade e da força até situações de paroxismo. A terceira é a fase intimista ou da abulia que, perante a incapacidade das realizações, traz de volta o abatimento. Álvaro de Campos é o mais moderno dos heterónimos de Fernando Pessoa. O seu drama concretiza-se num apelo dilacerante entre o amor do mundo e da humanidade; é uma espécie de frustração total feita de incapacidade de unificar em si pensamento e sentimento, mundo exterior e mundo interior. Revela como Pessoa a mesma inadaptação à existência e a mesma demissão da personalidade íntegra. Mas, pela sua violência e fraqueza, põe mais a claro o que em Pessoa ficou discreto e implícito.
Nota: Os textos referentes a cada um dos heterónimos de Pessoa constituiem as manchas de texto requeridas na Proposta 02.
Nenhum comentário:
Postar um comentário